27.10.07

"A voz, na rádio, é tudo o que temos; sendo tudo, fazemos daquela voz também a pessoa toda"


"Ela era uma mulher jovem, franzina, de olhos escuros e muito brilhantes, límpidos. Guardava no rosto traços de menina, sobretudo quando ria com aquele riso claro e inocente. O cabelo era preto, curso e liso, sedoso, com duas pontinhas viradas para a frente nos dois lados do rosto. O nariz pequeno e arredondado, os lábios não muito grossos, bem desenhados, com um suavíssimo toque de bâton quase incolor. Vestia simples mas elegante, túnicas, blusas claras e discretamente coloridas. A voz era uma voz agradável, amigável, risonha também, daquelas que dão vontade de conversa.
Eu sabia isto tudo dela e, no entanto, nunca a tinha visto. Seria capaz de a reconhecer se a visse assim, na rua, tão certo estava (estaria?...) de que ela era como eu "sabia" que era. Mas eu só a conhecia de a ouvir, não de a ver. Ela era, para mim, uma voz da rádio que me habituara a escutar com regularidade num programa matinal, durante as viagens de carro a caminho do trabalho. De tanto a ouvir, e só a partir da sua voz, fui imaginando como ela seria, dei-lhe um rosto, feições, cabelo, olhos, tudo. É algo que faço por vezes, é uma maneira de tornar real, palpável, inteira, uma pessoa de quem só conheço a voz e que, por qualquer razão, ouço frequentemente. Imagino-a só a partir da voz e, a partir daí, sempre que a ouço também de algum modo a "vejo".
Há dias, ela apareceu num programa de televisão. Eu não estava a olhar no momento, mas ouvi a voz e reconheci-a de imediato. Olhei, então, para a ver como eu "sabia" que ela era. Mas não era nada como eu sabia! Nada, nada, nada... Era loura, tinha os cabelos compridos, os lábios mais grossos do que a imaginara, a silhueta diferente, os olhos muito mais pintados do que eu "via", até o sorriso, esse sorriso que eu conhecia tão bem, parecia diferente quando saído daquela mulher agora em carne e osso. Só a voz se mantinha tal e qual. Foi uma surpresa... De tal modo que no dia seguinte, quando voltei a "encontrá-la" no programa matinal de rádio, nem sabia bem o que fazer: se continuar a "ver" aquela que eu imaginara desde sempre (mas já não era muito capaz...), se dar um novo corpo e uma nova imagem (os seus reais, afinal) àquela voz tão familiar e, de repente, também algo estranha.
Dei comigo a pensar como este é, e continua a ser, um dos lados sedutores da rádio, um lado de magia. A rádio leva-nos frequentemente a criar laços de grande familiaridade com pessoas que são, para nós, sobretudo uma voz. Mas a voz, na rádio, é tudo o que temos; sendo tudo, fazemos daquela voz também a pessoa toda. Imaginamo-la, criamo-la, desenhamo-la em função sabe-se lá de quê, em função do seu tom, do timbre, dos seus trejeitos, do modo de falar, do seu jeito de rir, se calhar do que queremos que seja. E sonhamos, criamos uma pessoa inteira com quem convivemos durante pedaços do nosso dia. E deixa de ser importante, para nós, se ela é parecida com o que imaginamos ou nem pouco mais ou menos. O modo como ela se faz presente para nós é pela voz, e pela voz toda ela se recria, toda ela vive. Neste sentido, o rádio é mais "caixa mágica" do que a própria televisão".

Figaldo, Joaquim, "Vozes da Rádio", Público, 24 de Outubro 2007


Um brilhante artigo sobre aquilo que a rádio pode ser para o espectador: imaginação.

22.10.07

11.10.07

"Tinha a morte dentro de mim. E é horrível estar grávido da morte."

"Não há nada de mais horrível do que a cobardia. Compreendi a frase do Hemingway,
quando quiseram saber o que é que ele achava da morte e a resposta foi: «Outra puta.»
Porque a morte é sempre uma puta e, a uma puta, não se pode dar confiança.
Uma amiga, que é minha médica, disse-me:
«Tens que aprender a viver com isto.» Não, não tenho.
Não tenho de viver com um filho da puta. Eu não vivo
com um cabrão, quero destruí-lo, não quero viver com ele."

"Agora, apenas sinto mais admiração por aquilo a que chamam pessoas comuns. Não existem pessoas comuns. Se temos a arte de fazer com que a alma do outro se abra, então, todas as pessoas são incomuns. Há uma riqueza extrema dentro de cada um de nós. É como nos livros. Ou sabemos tocar no mistério das coisas e, neste caso, o livro é bom. Ou não sabemos tocar no mistério das coisas e, pelo contrário, o livro é mau.
Se Deus quiser, hei-de escrever mais alguns livros."

7.10.07

Se aquela rua fosse minha...

Se aquela rua fosse minha...

Ver a Baixa repleta de gente é comovente.
Logo, uma iniciativa como esta só pode ser de louvar.
No entanto, penso que tudo poderia ter sido melhor aproveitado.
Esperemos que, para o ano, com mais financiamento, este dia se torne
um marco cultural na cidade Invicta.
E viva o Almirante Cândido dos Reis.

3.10.07

Paulo Ribeiro num universo masculino

(foto: JPN)

Numa conversa entre homens, futebol é um dos temas mais esperados. Em Masculine, ainda o espectáculo não começou, ainda o público não se sentou, e já as quatro personagens estão em palco: recebem o público com uns ‘toques na bola’. Exercícios de aquecimento?! “É mais uma ironia… talvez demasiado óbvia!”, afirma Paulo Ribeiro, o autor desta viagem pelo universo masculino.
Este mundo é um cruzamento de ritmos e estilos. Textos de Fernando Pessoa entrelaçam-se com histórias pessoais, poemas declamados vivem no timbre das canções, corpos que dançam Bolero num duelo improvisado entre Ravel e Zappa. É um palco onde tudo pode acontecer.

Paulo Ribeiro confiou esta missão a três dançarinos - Peter Michael, Romulus Neagu e Romeu Runa- e a um actor – Miguel Borges. Uma escolha propositada para uma peça em que os textos tinham de ter outra vocalização. No entanto, neste “espaço de liberdade” há muitos géneros a desenvolverem-se e, por vezes, a dança surge em segundo plano. Há o risco da atenção do espectador ficar retida no humor cúmplice de cada gesto dos intérpretes.
Neste limiar permanecem as vontades dos dançarinos-actores. Entre as gargalhadas do público, percebe-se que é desta forma que se constroem novos caminhos artísticos e se prevê o futuro. No final, há a bola que, do céu, cai no palco. “Tem a ver com esta questão dos ciclos… o de passar a bola e continuar”.


Este mês, no JUP: um dos trabalhos que mais gostei de fazer desde sempre.

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