"Nenhum relato de um sonho pode transmitir a sensação de sonho: o misto de absurdo, surpresa, espanto.
Aquela sensação de se estar prisioneiro do inacreditável
a verdadeira essência dos sonhos."
Joseph Conrad, Heart of Darkness
Não foi sonho aquilo que vimos.
Na passada quinta-feira embarquei numa viagem teatral, em resquícios do FITEI. Sabia que o que nos esperava seria algo invulgar. Dois actores, três espectadores, um táxi em andamento pelas mais variadas ruas do Porto. Numa reportagem dizia-se que eram ruas escuras e algo duvidosas. Entrei no táxi num misto de apreensão e desejo. Desconhecia quem era aquele gentil senhor que me ladeava mas encontrei conforto numa outra impressão digital. Senti as minhas costas acomodadas nos estofos confortáveis daquele Mercedes-em-forma-de-taxi e esperei.
O cigarro terminou, ele entrou de expressão fechada. As imitações transparentes dos Ray-ban pareciam-lhe dar o perfil de taxista pretendido. Mas não somente. Enquanto arranjava as mangas da camisa ouvia-se:
O cigarro terminou, ele entrou de expressão fechada. As imitações transparentes dos Ray-ban pareciam-lhe dar o perfil de taxista pretendido. Mas não somente. Enquanto arranjava as mangas da camisa ouvia-se:
“Bem vindo ao Resto do Mundo! Este espectáculo consiste num percurso com a duração de uma hora
e decorre nas ruas da cidade do Porto. Por razões de segurança é expressamente proibido registar
qualquer tipo de imagens ou sons durante o percurso. Não abra as janelas do automóvel. Não abra as
portas do automóvel. Não abandone o automóvel a não ser numa situação de emergência. Fora do
automóvel não nos podemos responsabilizar pela sua segurança. Vamos dar início ao espectáculo.
Por favor coloque o cinto de segurança. Por favor desligue o seu telemóvel. Boa viagem!”
e decorre nas ruas da cidade do Porto. Por razões de segurança é expressamente proibido registar
qualquer tipo de imagens ou sons durante o percurso. Não abra as janelas do automóvel. Não abra as
portas do automóvel. Não abandone o automóvel a não ser numa situação de emergência. Fora do
automóvel não nos podemos responsabilizar pela sua segurança. Vamos dar início ao espectáculo.
Por favor coloque o cinto de segurança. Por favor desligue o seu telemóvel. Boa viagem!”
Outro misto de surpresa, espelhado no meu sorriso nervoso. Arrancámos. Vimos os Aliados a ficar para trás e tentei adivinhar o caminho. Sem sucesso. Até que começou. Falou-nos de um homem do mar com o dom da palavra e histórias sem fim. Um homem como poucos, talvez. Já quando esses pensamentos se cruzavam com nostalgia e a nossa ânsia de saber quem seria esse homem roçava o insuportável, eis que...
"Calma. O que é preciso é calma."
Disseram uns novos olhos azuis, que não se desviavam das nossas órbitas. Era Marlow e falou-nos de Kurz e das suas histórias errantes por noites negras e tribos violentas. Histórias fantásticas, enfeitadas de mistério que seguiam a mestria de Joseph Conrad.
Marlow partiu de uma recordação de um taxista para se fazer nosso presente.
Marlow partiu de uma recordação de um taxista para se fazer nosso presente.
Foi nesse presente que já se fez passado que vimos... Conhecemos um Porto escondido, um Porto apagado. Um Porto onde a luz não chega, onde o Douro não corre, onde o que escorre não é Vinho do Porto. Onde o sotaque nortenho não se ouve... Antes um silêncio que se sente à medida que te moves.
"Em O Resto do Mundo atravessamos a zona oriental do Porto, onde se cruzam autoestradas e
quintais, bairros sociais degradados e amplas alamedas arborizadas. No Azevedo, a cidade para lá da
circunvalação, zona rural que ninguém acredita que seja ainda Concelho do Porto, tropeçamos em
hortas e caminhos de terra batida. Muitas das portas das casas escondem ilhas sem as mínimas
condições de habitabilidade. Praticamente não há transportes nem emprego.
As vias rápidas da cidade
funcionam aqui literalmente como muros; não há quaisquer acessos. Nos Bairros do Lagarteiro, do
Cerco do Porto e de São João de Deus encontramos um quotidiano marcado pelo desemprego e
abandono escolar e ainda pelo consumo e tráfico de droga.
São centenas de famílias em urbanizações construídas como guetos,
por onde o resto da cidade nunca passa. Em São João de Deus os prédios semi-demolidos
desenham um cenário de guerra a 5 minutos das luzes da Avenida Fernão de
Magalhães e da novíssima centralidade do Dolce Vita e do Dragão."
quintais, bairros sociais degradados e amplas alamedas arborizadas. No Azevedo, a cidade para lá da
circunvalação, zona rural que ninguém acredita que seja ainda Concelho do Porto, tropeçamos em
hortas e caminhos de terra batida. Muitas das portas das casas escondem ilhas sem as mínimas
condições de habitabilidade. Praticamente não há transportes nem emprego.
As vias rápidas da cidade
funcionam aqui literalmente como muros; não há quaisquer acessos. Nos Bairros do Lagarteiro, do
Cerco do Porto e de São João de Deus encontramos um quotidiano marcado pelo desemprego e
abandono escolar e ainda pelo consumo e tráfico de droga.
São centenas de famílias em urbanizações construídas como guetos,
por onde o resto da cidade nunca passa. Em São João de Deus os prédios semi-demolidos
desenham um cenário de guerra a 5 minutos das luzes da Avenida Fernão de
Magalhães e da novíssima centralidade do Dolce Vita e do Dragão."
Senti que aquela janela do Táxi era a única coisa que me separava deles. Dei razão a Rosseau e uma frase ecoou...
"O homem é naturalmente bom,
a sociedade é que o corrompe."
No fim, caminhamos e discutimos a verdadeira realidade. Viste-nos como insensíveis, eu como indiferentes. Porque, apesar de tudo, continuámos a olhar para aquele mundo com um vidro de táxi a separar-nos. Hoje penso que o mundo nos torna indiferentes, ou antes, impotentes.
O que é certo é que a morte, a pobreza, a guerra não se encontram apenas em África ou no Líbano. Estão à nossa porta...
Esta não foi apenas a melhor peça que eu vi por ter escapado de todo o lugar-comum (salvo seja) do teatro. Fez-me lembrar de uma parte de mim que eu julgava esquecida.
a sociedade é que o corrompe."
Não foi sonho o que vimos. Foi uma realidade, na qual tivemos a sorte de não nascer. Ali vivem pessoas em prédios sem luz, onde as portas e as janelas estão vedadas com tijolos. No escuro, distinguem-se sombras de pessoas, vê-se movimento, lê-se nas entrelinhas.
No fim, caminhamos e discutimos a verdadeira realidade. Viste-nos como insensíveis, eu como indiferentes. Porque, apesar de tudo, continuámos a olhar para aquele mundo com um vidro de táxi a separar-nos. Hoje penso que o mundo nos torna indiferentes, ou antes, impotentes.
O que é certo é que a morte, a pobreza, a guerra não se encontram apenas em África ou no Líbano. Estão à nossa porta...
Esta não foi apenas a melhor peça que eu vi por ter escapado de todo o lugar-comum (salvo seja) do teatro. Fez-me lembrar de uma parte de mim que eu julgava esquecida.
"Quem faz este percurso não acredita que está no Porto. Quem por aqui morta também não. Quando saem do seu bairro as pessoas dizem "vou ao Porto". Mas o Porto nunca vem a estes bairros. A cidade ignora-os. A cidade tem medo deles. Um dia o medo e a ignorância vão engolir-nos a todos"
O Resto do Mundo, uma criação Visões Úteis
10 comentários:
Este excelente post remete para a reflexão clássica entre a genética e o ambiente. Se é verdade que "O homem não é só o inato mas também o adquirido" Goethe, não podemos ignorar que "Os factos devem provar a bondade" Séneca.
Isto é, a vida árdua dos guetos das nossas cidades não pode levar à justificação de actos menos correctos (alguém acredita que roubar sapatilhas de marca ou tlm de 3ª geração é luta pela sobrevivência?).
Dito isto, acredito que, por exº, o trabalho dos Médicos do Mundo com os sem abrigo do Porto é tão meritório quanto as campanhas internacionais da AMI.
o que primeiro é feito por necessidade, torna-se á medida do tempo algo banal... daí os actos menos correctos.
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"Vivemos como sonhamos, sozinhos"
Tenho o The Heart of Darkness pa ler em casa***
E é a banalidade que faz a espuma dos nossos dias. Mas, seguindo esse prisma, será que nos podemos viciar em actos irregulares? Nós, os "deste" mundo? E designo actos irregulares aqueles que não se destinam a uma luta pela sobrevivência. Deste modo, graças aos vícios e aos infortúnios sucessivos nem toda a gente consegue ser ajudada... porque, simplesmente, não percebem como.
opensador: Penso que a máxima "Pensar local, agir global" é uma das mais sábias da idade moderna. E ainda no Porto há a VAMP (Viatura de Apoio Móvel à Prostituição). Mas pelo que percebi de uma reportagem, nem sempre esta gente que ser verdadeiramente apoiada. Há noites que ninguém aparece. Obrigada pela tua visita. Conhecemo-nos?
agonia: e emprestas?
Percebo perfeitamente o erro que é separar a sociedade em "mundos". De facto, eu devia ter esclarecido melhor o meu ponto de vista. Não quis estar a afirmar que , por exº, a criminalidade se associa apenas a más condições económicas. Esse preconceito snob deve ser combatido. Simplesmente, por vezes existe outra generalização que é,se tem status social inferior é necessariamente mais puro do que um rico que, por esse prisma é sp explorador dos "trabalhadores".
Há outro provérbio "Se cada um limpar à porta de sua casa, a cidade ficará limpa"
Ah sim. Mas não quis cair nesse estereótipo que hoje em dia está completamente longe da realidade, tal como a utopia comunista do "operário-explorado" caiu em desuso.
O objectivo deste post pode ser resumido nesse provérbio. Há que abanar as hostes, sair da letargia, não?
Bem me parecia que serias tu. Da última vez que te vi estava no Rocky Point a estudar, há já vários meses, e a tua irmã tinha-te feito um galo. Melhor? (: Pedro, não?
Obrigada, igualmente. Irei manter o teu blog debaixo d'olho.
sure, tá em inglês que foi na colecção baratucha da Penguin
Oki (:
Feito. E essa questão da privacidade na blogosfera é, de facto, infame. Principalmente, para vítimas de agressividade familiar (também me incluo neste grupo!)
Desculpa a confusão do nome (tenho memória de peixe) e a demora.
\o
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